Amazônia em Chamas é eternizada em Porto Velho

Obra de quatro artistas rondonienses na principal avenida da cidade denuncia destruição da floresta e caos climático vivido pela população do estado 

O recorde de queimadas na Amazônia, registrado este ano, ficará eternizado na capital do estado que mais desmatou a floresta nas últimas quatro décadas, graças ao trabalho de quatro artistas rondonienses. Com o objetivo de evitar que a catástrofe que afetou milhares de vidas pelas chamas, pela forte poluição do ar e pela seca histórica do Rio Madeira, caia no esquecimento, eles criaram um mural com 25 metros de extensão em uma das principais avenidas de Porto Velho (RO) retratando como as belezas e riquezas do bioma estão sendo destruídas pelo fogo, pela ação humana e pelas mudanças climáticas.

“Parecia um filme de terror porque era aquela fumaça preta, a gente inalando aquilo 24 horas por dia, dormindo, acordando de novo, e aquilo só piorava. Todos os anos a gente vivencia isso, mas não por tanto tempo e num nível tão elevado. Muita gente passou mal, muita gente ficou doente, a imunidade foi lá embaixo, mas a gente sobreviveu. Agora essa história tem que ser contada com um início, um meio e o fim, que a gente ainda não sabe”, explica Nath, uma das artistas e idealizadoras do mural, junto com Rabsk, Latrop e Silva, que complementa: “A nossa inspiração é oferecer uma arte-manifesto que convide as pessoas a refletirem sobre o que acontece todos os anos na região amazônica, principalmente entre agosto e outubro, quando acontecem muitas queimadas – grande parte delas criminosas – e a impunidade prevalece, aumentando a sensação de insegurança climática.”

Localizado na avenida Jorge Teixeira, na esquina com a avenida Amazonas, a obra se concentra na palavra Amazônia. Cada letra, com cerca de três metros de largura, destaca um aspecto da região. Juntas, elas formam mais que o nome do bioma: elas contam a catástrofe que tem se repetido nas últimas décadas e se agravado nos últimos anos: A – floresta; M – indígena; A – onça pintada; Z – Rio Madeira seco; Ô – floresta pegando fogo; N – animais fugindo do fogo; I – brigadistas apagando o fogo; A – revolta popular.  O mural, que recebeu o nome de Amazônia em Chamas, se encerra com a mensagem de resistência na última letra, lembrando que os rondonienses e os demais brasileiros podem interromper a trajetória de destruição da floresta, que a está colocando cada vez mais perto do seu ponto de colapso. 

A tipologia escolhida é característica da cultura da região. “⁠Essa tipografia estabelece uma relação entre a cultura do graffiti, que nasce das escritas urbanas, e a cultura dos abridores de letras da região amazônica, que expressam essa arte nos barcos característicos da região norte. Essa tipografia é uma forma de lembrar e homenagear esses artistas e trazer mais uma camada de sentido e representatividade da cultura nortista, pois nos lembra que quando a Amazônia queima, também queima com ela a cultura regional”, esclarece Silva. 

Txai Suruí, cujo povo é originário de Rondônia, e que vive em Porto Velho, também foi convidada pelo Megafone Ativismo, entidade responsável pela iniciativa do mural, para fazer parte desse protesto artístico e comentou:  “A gente decidiu fazer esse ato de consciência política, de resistência e de enfrentamento às queimadas aqui em Porto Velho, na capital de Rondônia, chamada também capital da AMACRO (região entre Amazonas, Acre e Rondônia que é conhecida pelo desmatamento), para trazer consciência do que está acontecendo na nossa floresta. Todo mundo fala muito da Amazônia, mas escuta muito pouco quem é daqui. Nós somos a periferia do mundo e também somos a periferia do Brasil. Uma prova disso foi essa fumaça nos sufocando durante dois meses e tudo continuava normal no restante do país, até chegar no Sudeste, em São Paulo, para as pessoas perceberem que tem gente aqui.“

A ativista rondoniense também ressalta a importância do mural para dialogar com a população local da cidade: “A gente acredita que a arte pode tocar as pessoas e essa arte é para trazer consciência para as pessoas da cidade que elas são pessoas amazônidas e que não é só porque elas vivem na cidade que elas deixaram de viver na Amazônia. Elas vivem aqui, fazem parte desse ambiente, fazem parte desse bioma, e quando esse bioma é afetado, isso afeta elas também. Hoje a gente já está vivendo essa crise climática, essa emergência climática. A gente já sente as consequências disso. E as pessoas precisam saber disso”

Queimadas em Rondônia tornam Porto Velho a cidade mais poluída do mundo

Entre janeiro e setembro deste ano, mais de 740 mil hectares foram queimados em Rondônia – um aumento de 46% em relação ao mesmo período de 2023. Mais da metade desse total (56%) foram queimados em setembro (420 mil hectares), segundo o Monitor do Fogo do MapBiomas. Esses números colocam Rondônia no sexto lugar entre os estados que mais queimaram em setembro e em oitavo lugar entre os que mais queimaram entre janeiro e setembro, mesmo sendo apenas o 13º estado brasileiro em território.

A intensidade das queimadas em Rondônia foi tamanha que sua capital, Porto Velho, permaneceu como a cidade mais poluída do mundo por vários dias no início de setembro. “A gente fala que a Amazônia é o pulmão do mundo, e o pulmão do mundo, durante dois meses, respirou fumaça. Meu sobrinho nasceu faz dois meses, e a minha irmã fez uma fala que me chocou muito. Ela disse que o meu sobrinho ainda não tinha respirado um ar puro. Então você imagina isso, as nossas crianças estão respirando um ar intoxicado”, diz Txai Suruí

Seca e mudanças climáticas levam o Rio Madeira a pior marca de sua história

A situação em Rondônia está mais dramática por causa da seca histórica que atingiu o Rio Madeira – principal curso d’água do estado, com papel estratégico no fornecimento de água, escoamento de mercadorias e transporte de pessoas. Um dos maiores afluentes do Rio Amazonas, em meados de setembro ele atingiu sua pior marca histórica desde que começou a ser monitorado em 1967: 25 centímetros.  A maior duração da estação seca em 2023 – algo que deve se repetir este ano – e a menor quantidade de chuvas explicam o recorde e também evidenciam os efeitos da mudança climática provocada pela ação humana. 

Comunidades ribeirinhas estão sem acesso à água potável para uso pessoal, lavouras e para seus animais. A pesca, que fornece uma importante fonte de proteína na alimentação tradicional da região, também está comprometida. Além de afetar a produção, a seca prejudica o transporte e, por consequência, a comercialização de produtos. 

“Pra mim o mais tenso foi ver a seca do rio. Ver o Rio Madeira, que é o terceiro maior rio do Brasil, com 25cm de profundidade, é ver um rio morrendo. É um rio que navega balsa, é um rio que o pessoal do Mato Grosso vem trazer grãos para exportação, é um rio que tem vários quilômetros de largura. E cadê essa água? A gente está matando a Amazônia e se matando”, desabafa Silva, um dos artistas responsáveis pela pintura do mural Amazônia em Chamas.

Rondônia: o histórico de destruição ambiental

O território de Rondônia fica integralmente dentro da floresta amazônica e passou por transformações drásticas nas últimas quatro décadas. Rondônia lidera o ranking de estados com maiores perdas de vegetação nativa nos últimos 39 anos, passando de 93% em 1985 para 59% em 2023. Atualmente, 40% de sua área são ocupados por pastagem. São 9 milhões de hectares de pastos contra 12 milhões de florestas em 2023. Para efeito de comparação, em 1985 as pastagens ocupavam pouco mais de 1,4 milhão de hectares. Isso significa que a destruição da floresta foi majoritariamente concentrada nos últimos 39 anos. 

Entre 1985 e 2023, a área de pastagem passou de 6% para 38% em Rondônia. Rondônia é um dos três estados brasileiros com maior expansão de pastagem, analisando somente a porção de área dos estados dentro do bioma Amazônia, atrás apenas de  Tocantins (de 33% para 74% da área do estado), Maranhão (de 14% para 48%).  Todos os dados  são da Coleção 9 de mapas de uso e cobertura da terra do MapBiomas. Em 2023, foi o sétimo estado brasileiro com maior área desmatada, segundo o Relatório Anual do Desmatamento do MapBiomas.

A área em amarelo no mapa representa pastagem. No gráfico em pizza, a linha amarela no canto inferior direito representa a agropecuária (agricultura + pecuária).

Quem são os artistas

Silva: Natural de Vilhena, interior de Rondônia, desenha desde criança, sendo formado em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pelotas (2018). Faz graffiti há 12 anos e já participou de 14 festivais de graffiti nacionais e internacionais representando o estado de Rondônia. Promove eventos culturais e workshops de arte urbana. É também fundador da GAIA (Galeria Aberta e Independente de Arte Urbana de Rondônia).

Nath: É natural de Porto Velho, Rondônia, formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Uniron. Não trabalha profissionalmente com graffiti, mas sempre gostou muito de desenhar, principalmente mandalas. Já se aventurou em dois festivais de graffiti e arte urbana, um em Porto Velho e outro em Rio Branco, no Acre.

Rabsk: Nome artístico de Elias Damasceno dos Santos, 38 anos, portovelhense, filho de beiradeiros. Tem contato com as artes desde os seus 10 anos de idade. Desde 2015, trabalha com arte e já participou de vários eventos artísticos e festivais de graffiti.

Latrop: Iagor Portal Batista, mais conhecido pelo nome artístico de Latrop, 31 anos, nascido e criado em Porto Velho. Desde menino, gosta de desenhar e se expressar através da arte. Em 2023 decidiu reescrever sua história por meio dos desenhos. Atualmente, é tatuador e já realizou outros trabalhos artísticos com desenhos em paredes.

O que é o Megafone Ativismo

Megafone Ativismo é um programa de desobediência artística e apoio a ativistas socioambientais, realizado por uma coalizão das organizações Pimp My Carroça, Instituto Socioambiental (ISA), Engajamundo, Sumaúma Jornalismo e Associação Intercultural de Hip-Hop Urbanos da Amazônia (AIHHUAM). O programa inclui a pintura de murais artísticos como esse, ciclos de formação e apoio a ativistas da região Amazônica e a realização do Prêmio Megafone, primeiro prêmio de ativismo do Brasil.

Fonte: AViV Comunicação

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