Teria a ONU traído as expectativas da maioria global?

© AP Photo / Kamran Jebreili
Após o final da Segunda Guerra Mundial, novas organizações internacionais – como as Nações Unidas – não conseguiram escapar dos efeitos da rivalidade política entre as grandes potências que, ao buscarem seus próprios objetivos e interesses, acabaram por frustrar as expectativas da chamada “maioria global”.
Não apenas em sua origem, mas também no seu desenvolvimento, a disputa por poder entre as grandes potências foi muitas vezes fator determinante no âmbito das operações da ONU, limitando também a liberdade de ação dos países pertencentes à organização. Tal situação se deu por conta de uma série de intrincadas diferenciações funcionais e divisão de responsabilidades dentro das Nações Unidas. Nela, foi acordado que o Conselho de Segurança seria o órgão principal com o dever de agir contra “ameaças à paz” e para a manutenção da segurança internacional. Dentro do conselho, apenas os membros permanentes poderiam exercer poder de veto sobre resoluções discutidas em seu âmbito, ao passo que as demais nações do sistema ficavam vinculadas a suas decisões.
Em se tratando das áreas de comércio e finanças, por sua vez, sua discussão ficava a cargo do sistema de Bretton Woods, constituído pelo Banco Mundial e pelo FMI. Tais organizações foram inicialmente compostas e dominadas pelos países capitalistas ocidentais (o atual G7), que lidavam com os assuntos monetários e de comércio de forma a gerar regras universais para todos os demais Estados do sistema.
Na prática, tal condição garantiu um tratamento especial para os interesses do Ocidente ao longo dos anos, alienando a maior parte dos países assim chamados periféricos (do ponto de vista econômico e de produção), o que diminuiu a eficiência tanto do FMI como do próprio Banco Mundial. Não à toa, fóruns como o G20 e o grupo BRICS surgiram nos anos 2000 com o intuito de reformar essas organizações e dar maior voz às potências emergentes e aos países em desenvolvimento no processo de tomada de decisão global.
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Por fim, temos a Assembleia Geral das Nações Unidas, que funciona (por assim dizer) como a “consciência” da organização. Na qualidade de plataforma simbólica para a reunião das mais diversas nações do globo, a Assembleia Geral poderia debater livremente qualquer questão de interesse de seus membros e aprovar resoluções que, embora funcionassem como sanções do ponto de vista moral, tinham pouco efeito no plano prático. Logo, o principal poder da Assembleia Geral limitou-se ao da expressão de “sentimentos e de posições éticas” a respeito de assuntos importantes da agenda internacional, mas sem muitas consequências para além disso.
Ademais, em seus anos iniciais, a Assembleia Geral das Nações Unidas também não escapou de estar envolvida nos imbróglios políticos atinentes ao contexto de rivalidade da Guerra Fria. Com a descolonização, no entanto, a voz da “maioria global” (composta pelos países do então chamado Terceiro Mundo ou do Sul Global para alguns) começou a ganhar mais espaço.
Afinal, em 1959 o número de membros da ONU tinha crescido para 83 Estados e em 1985 este número tinha aumentado para 159, todos dotados de complexidade política e econômica variada. Países da América Latina, Ásia e África começavam a apresentar padrões similares de votação nas resoluções que eram votadas na Assembleia Geral das Nações Unidas, mas ainda assim muitos deles testemunhavam com certa frustração a limitação da ONU em auxiliá-los no seu desenvolvimento econômico e social.
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Para além disso, apesar do número de membros das Nações Unidas ter aumentado exponencialmente desde a década de 1950, o quadro de membros permanentes do Conselho de Segurança não se alterou. A participação com cadeira permanente no conselho continuou confinada aos três Aliados do tempo de guerra (Reino Unido, Estados Unidos e União Soviética, substituída depois pela Rússia), mais a França e a China.
Com o rápido crescimento da ONU durante a Guerra Fria, no entanto, o número de membros não permanentes do conselho (ou seja, aqueles sem poder de veto) foi elevado ao número de dez, cinco da Ásia e da África, dois da América Latina, dois da Europa Ocidental e um da Europa Oriental, totalizando 15 membros totais para as discussões do órgão.
Ainda assim, o poder de decisão definitivo no Conselho de Segurança não passou para as mãos da “maioria global”, mas sim continuou a depender do entendimento consensual entre os membros permanentes originários. Seguiu-se a partir daí uma série de frustrações quanto ao papel principal do conselho, a saber, a manutenção da paz internacional, por conta das divisões e, principalmente, das diferenças políticas entre as principais potências do sistema durante e mesmo após o final da Guerra Fria.
Um dos exemplos da ineficácia do órgão durante a segunda metade do século XX foi que Estados Unidos e União Soviética precisaram inclusive empreender esforços na área de não proliferação nuclear e desarmamento (temas que interessavam todos os países do sistema) por intermédio de tratados bilaterais e multilaterais à margem das Nações Unidas.
Não sem razão, hoje tornou-se cada vez mais frequente o questionamento a respeito da atual configuração do Conselho de Segurança, especialmente em vista de sua paralisia perante situações como os conflitos em curso no Leste Europeu e no Oriente Médio. Muitos entendem que o objetivo de atingir a manutenção da paz internacional seria mais eficaz e duradouro se o poder decisório fosse diluído para os países pertencentes à “maioria global”.
Em suma, isto permitiria a mobilização real da vontade política da verdadeira “comunidade internacional”, que não se resume a um punhado de países ocidentais como se quer fazer pensar, podendo mitigar – de algum modo – a dissidência orgânica que parece existir entre as grandes potências. Chegar a uma condição assim, no entanto, não será tarefa nada fácil e muito menos previsível em um futuro próximo.
O que podemos dizer de momento, portanto, é que a ONU não foi capaz de realizar o desejo de paz e desenvolvimento econômico e social da maior parte dos países do globo. Uma pena para uma organização que foi fundada repleta de esperanças, mas que apresentou tantas desilusões.
Source: Sputnik
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