Caso teve início com uma freira do Paraná que foi impedida de usar hábito para a CNH
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que a Constituição Federal assegura o direito de utilização de roupas e acessórios relacionados à crença ou à religião nas fotos de documentos oficiais, desde que não impeçam a adequada identificação da pessoa. O julgamento foi concluído em 17 de abril.
A tese foi defendida pela Defensoria Pública da União (DPU), que ingressou na ação como amicus curiae (amigo da corte) para contribuir tecnicamente e fornecer subsídios ao órgão julgador na defesa da liberdade religiosa. A decisão do Tribunal tem repercussão geral e deve ser seguida tanto pela Administração Pública quanto pelos demais órgãos julgadores.
O caso teve início quando uma freira do Paraná foi impedida de usar o hábito religioso em foto para a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma Ação Civil Pública contra a União e o Departamento de Trânsito do Estado do Paraná (Detran/PR).
A base para a proibição foi uma portaria do Departamento de Trânsito e a Resolução 192/2006 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) que vedam o uso de qualquer acessório cobrindo a cabeça ou parte do rosto na fotografia oficial de documento de identificação civil.
O juiz de 1ª instância e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em recurso, deram razão à freira, por entenderem que o véu não impedia a sua correta identificação. A União recorreu então ao STF, com o argumento de que, caso se permitisse o uso de vestimenta religiosa em fotografia para documento oficial, as pessoas religiosas estariam sendo dispensadas de cumprir obrigação imposta a todos.
Julgamento
O julgamento teve início no dia 8 de fevereiro, quando o relator, ministro Luís Roberto Barroso, apresentou relatório e, em seguida, as partes, as entidades e as instituições admitidas como interessadas no processo realizaram suas sustentações orais. O defensor público federal Claudionor Barros Leitão fez a defesa da tese de que a Constituição Federal estabelece o dever do Estado de garantir a liberdade religiosa, o que incluiria permitir a utilização dos trajes religiosos em documentos oficiais.
Para o defensor, “a liberdade religiosa faz parte da essência da dignidade da pessoa humana e foi erigida à condição de cláusula pétrea pela Constituição Federal de 1988, devendo as obrigações impostas à coletividade se legitimarem a partir de critérios razoáveis e proporcionais”.
Ainda segundo ele, “o uso do hábito religioso ou, de forma mais ampla, o exercício da liberdade religiosa, não causa, de nenhuma forma, prejuízo à identificação civil das pessoas, já que, independentemente da modalidade de identificação a que a pessoa é exposta, a sua crença poderá ser respeitada de forma integral sem prejuízo às suas características pessoais”.
Barros Leitão destacou também que “outros documentos oficiais de identificação não fazem igual exigência e não há registro que tenha causado impacto na segurança pública. É o caso da emissão do passaporte, documento internacionalmente reconhecido, que não exige a retirada de véu para a captação da foto”. O defensor finalizou a sustentação ressaltando que “há diversas alternativas legais que atendem aos objetivos de segurança pública, inclusive com métodos muito mais precisos e seguros do que a fotografia”.
Após a leitura do relatório e das defesas orais, o julgamento foi suspenso até a sessão de 17 de abril, quando o Tribunal pleno acompanhou o voto do relator pelo desprovimento do recurso extraordinário da União. O ministro Luís Roberto Barroso considerou que restringir o uso dessas vestimentas sacrifica de forma excessiva a liberdade religiosa, com custo alto para os direitos individuais, e não é tão relevante para a segurança pública. Barroso destacou que a liberdade religiosa é um direito fundamental e, para restringi-lo, é necessário observar o princípio da proporcionalidade.
Tese vencedora
Na decisão foi aplicado o conceito de adequação razoável, que possibilita fazer adaptações necessárias, na interpretação de leis e normas infralegais, de modo a assegurar igualdade de oportunidades a todas as pessoas, com base nos direitos humanos e em liberdades fundamentais.
A liberdade religiosa, prevista no art. 5º, VI, da Constituição Federal, é essencial para a dignidade humana. Ela garante aos cidadãos o direito de viver de acordo com a sua crença, inclusive com o uso de roupas e acessórios que representem sua fé. A Corte considerou que, apesar de as regras para emissão de documentos ajudarem a promover a segurança pública, não há motivação para impedir o uso de acessório religioso que não cubra o rosto nem impeça a identificação individual. Conforme a decisão, mesmo se tratando de uma obrigação imposta a todos, o Estado tem o dever de, na medida do possível, adaptá-la para que não discrimine grupos vulneráveis ou minoritários.
A Corte decidiu, então, que permitir que pessoas religiosas possam manter suas vestimentas nas fotografias de documentos oficiais, desde que mantenham o rosto visível, representa uma adaptação razoável garantida pela Constituição, possibilitando conciliar as preocupações com segurança e a proteção da liberdade religiosa de todas as pessoas. Assim, o Tribunal fixou a seguinte tese de repercussão geral: “É constitucional a utilização de vestimentas ou acessórios relacionados à crença ou à religião nas fotos de documentos oficiais desde que não impeçam a adequada identificação individual, com rosto visível”.